O ator que finge, disfarça e sente: uma análise superficial de uma atuação paradoxal
O ator que finge, disfarça e sente
Introdução
Nas artes cênicas, a atriz ou o ator é aquele que interpreta ou encena uma ação dramática baseando em estímulos sonoros ou visuais, textos trágicos ou cômicos e é capaz de dar vida, corpo e voz a uma emoção, pensamento, personagens, poesias ou textos.
O ator que relatarei, vai estar vivo nele um problema que está além da sua representação enquanto artista e o do distanciamento de sua expressão e do seu sentimento. Os seus pensamentos e idealizações podem estar conectados ao seu real movimento corpóreo e a sua entoação poética. A sua linguagem se aperfeiçoa quando a possessão lhe oferece a consciência da divindade de espírito artístico. Não é necessário ser um ator para se identificar com os seus sentimentos.
Para se superar a sua dor, é inevitável que se construa enquanto divindade. E vai ser enquanto deus-artista que esse ator conseguirá fugir da sua realidade, solucionar a sua incompletude, buscar um autoesquecimento ou simplesmente desfrutar do seu “problema” de transfiguração entre o que sente e o que expressa.
Palavras-chaves: possessão dionisíaca; embriaguez; teatro; linguagem.
Desenvolvimento
O começo do problema desse ator - que não atua somente em palcos, mas também na vida cotidiana - é a incapacidade de se enxergar enquanto um personagem já definido e construído. A forma vazia como se enxerga e de como se desvaloriza define um estado criador que, ao mesmo tempo que o leva a ser adorado, traz consigo desprestígios que não o impulsionarão com que se sinta realizado e de só conseguir atingir esse estado eufórico e entusiasmado através de uma embriaguez, possesso ou desperto do seu sono. É um ator que se incomoda constantemente e sempre está se colocando em movimento. Seja em uma ansiedade extrapolada ou na necessidade de agitação para conquistar - na sua calmaria - o prazer desejado.
Uma forma de permanecer fixo e também constante; percebendo-se enquanto construtor de realidade e produzir no seu fingimento a ação que levará o bom desenvolvimento da sua arte, do seu impulso poético ou dos seus movimentos - enquanto
dança. A visceralidade estará manifestada no seu corpo e mimese. A sua paixão o levará a viver, precisar e depender totalmente desta condição para que se sinta completo novamente.
Havendo, mesmo assim, um grande vazio entre o seu palco e o seu cotidiano. Mesmo tendo noção do seu potencial, é vivo nele o sentimento de semipleno. Vendo a necessidade de fazer no outro o seu existir. Seu excesso de sentimento e de emoção sempre o moldará em uma deficiência de autoidentificação e por escolha, se manterá preso na ânsia pela mudança e também pelo desejo de uma permanência eterna. Em Jean Lacoste (1986) esse artista está dividido em um dualismo entre o dionisíaco e o ressentimento.
A necessidade de destruição e de inovação pode ser a expressão de uma força superabundante, ao mesmo tempo sacrílega e prenhe de futuro: é o artista dionisíaco. Mas essa necessidade pode nascer também da fraqueza, do ódio a toda superioridade e do desprezo por si mesmo. É o artista do ressentimento. Do mesmo modo, a necessidade de permanência e de eternidade pode nascer do amor ao mundo e da gratidão: é a arte da apoteose, ditirâmbica. (LACOSTE, 1986, p.90).
Se por um lado existe a necessidade do apego ao sentimento e ao distanciamento - com o que pode ser deixado no esquecido. A condição consciente entre o seu começo, meio e fim o levará a uma busca por constante metamorfose pois ele não reconhece o seu estado atual de abandono e desprezo. E por tanto acumular, muito acabará esquecendo, atrofiando e - ao mesmo tempo que se distancia, se mantém mais perto da sua subjetividade. Ou seja, todo o sentido é construído para ser esquecido em outro momento.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.
(PESSOA, Não sei quantas almas tenho, 1973, p. 48).
Trazendo a linguagem em Gadamer (1993) sobre a sua limitação que ao ganhar um significado e contextualização torna-se significativa, mas sem a sua corporeidade de sentido próprio. Ressignificando este conceito; vendo aqui o autoesquecimento também como a sua importância enquanto linguagem - trago novamente o exemplo de Gadamer quando sua filha o pede para ensinar a escrita da palavra morango. “Disse-lhe como era; ela ficou um instante pensativa e respondeu: ‘Que estranho, quando ouço assim, não entendo mais a palavra. Só quando volto a esquecê-la é que estou novamente nela” (2002, p. 194). Recoloco no papel desse ator - de profundo introspectividade que estando a todo momento consigo mesmo, traz o primeiro sentido das coisas, sustentando um sentimento de profundo apego e compreensão do seu belo mundo.
Em um dos seus últimos livros, o escritor Manoel de Barros traz em poesias as suas memórias e sentimentos de infância. Tocado de um intenso saudosismo e lirismo, sendo essa a sua primeira forma de ver o mundo e também a de sentir. “A gente não gostava de explicar as imagens porque // explicar afasta as falas da imaginação. // A gente gostava dos sentidos desarticulados como a // conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de mosca. // Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais. // [...] A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais. // [...] A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala.” (BARROS, 2015, p. 12).
A construção de uma memória fixa e permanente se perde ao mesmo tempo em que - para se manter apegado - no seu mais íntimo sentimento será necessário passar pela fase do abandono.
Esse mesmo ator rico em emoções que se impulsiona a todo momento em uma busca por novas paixões, mantém uma dificuldade em expressar aos outros o que para si mesmo é óbvio e permanente. Ao mesmo tempo em que tem consciência do seu estado e pensamentos, a articulação com um outro - ou uma plateia - o retrai para um melhor aperfeiçoamento da sua mimese e atuação. Já que ele não faz o personagem, mas sim se incorpora em um.
O mesmo lado da mesma moeda
Esse ator se prende a sua primeira constituição de sentido e se mantém apegado na única coisa que o liga a si mesmo. Não existindo nenhuma dialética e nenhum interesse em expressar o julgar do outro porque nesse estado, todos os sentimentos estão corretos e se tem um - talvez falso ou ingênuo - domínio sobre a sua verdadeira vivência; mesmo com ou sem a sua consciência.
A possessão é a condição prévia de toda a arte dramática; possuído, o exaltado por Dionisos vê-se como sátiro - e como sátiro, então, ele vê o deus. O que significa que, metamorfoseado, ele apercebe, exterior a si, uma nova visão que é a concretização apolínea do seu estado. (BORIE. ROUGEMONT, SCHERER. 2014, p. 348).
Nessa consciência reflexiva ele se depara com uma metamorfose novamente dualista, incompleta e constantemente em movimento. A ilusão apolínea o cega completamente os olhos. Não é sentido o que vem de longe e nem o que vem de perto. No mesmo instante que as emoções ficam à flor da pele, uma frieza e indiferença desafloram por todos os lados. Fica então carregado por um forte incômodo que gera a sua possessão.
Já a recepção externa, mesmo causando pouco efeito sobre a sua transfiguração, cai sobre ele em formato de desânimo e apatia. Ao mesmo tempo o nutrindo com uma casca rígida e concreta de ilusão. Pode voltar a antiga tentativa de querer sair desse estado e de, ao mesmo tempo, querer estar nesta constante pulsação, pois tudo isso é guardado para a sua solidão e expressando em forma bela para uma plateia. Expondo assim a sua representação - quase perfeita - de uma imaginação idealizada, de uma emoção individual e de uma subjetividade límpida.
DITO POR NÃO DITO FICA
retorno sem retornar, parto
chego sem saber e falo
no mesmo instante mudo!...
Loucura - parto e fico!...
vou e não vou
sou e não sou
O real é puro sonho
puro - enrolado
forte manipulado
o fraco dominador
de nossa herança
contra-senso e paradoxo.
(CRAVO, 2003, p. 73).
Visto que a arte se coloca aqui como um remédio diante de uma prostração; de uma impotência em olhar a vida e sua personalidade de frente, de encarar a realidade fixa e a mutável como elas realmente são. Tem então a necessidade de construir-se enquanto deus. De criar fragmentos do que não possa vir a ser por inteiro. Esse ator não se transfigura se não através da sua linguagem corporal, deixando suas emoções no intangível, ao mesmo tempo que a transmite para todo o seu corpo, sua expressão ou leitura de um texto. Sendo também através das palavras que obterá uma consciência capaz de proferir o seu eu lírico, de criação e de pensamento.
Nesse ator, em um estádio religioso (Kierkegaard, 1986), que movido pelo arrependimento, buscará um sentido fora da vida prática, fora dos prazeres corpóreo, fora da vivência de moral e de uma lei; irá em busca da transcendência. Será esse o momento em que a subjetividade do indivíduo se encontrará com o absoluto, o transcendente. Portanto esse encontro exige um passo definitivo, profundo e também cego. No qual Kierkegaard chama de fé e também considera como um modelo a ser seguido. Sendo assim, esse estágio não pode ser alcançado em nenhuma justificação racional ou científica, esse é o momento em que esse artista acredita e confia naquilo que não o dará certeza. O estádio religioso supera o estádio estético (no qual o homem se abandona à imediaticidade, deixando nas decisões alheias o seu desejo) quando o indivíduo se coloca diante de uma escolha que implicará uma finalidade maior. O seu movimento será ímpeto e consciente.
Optando por uma não significação do seu mundo simbólico, será envolto por uma casca - em forma de máscara divina - capaz de materializar tudo o que foi construído e que agora será perdido no despertar do sonho apolíneo para a sua embriaguez dionisíaca.
Nesse entusiasmo, a noção da existência de um outro e de uma plateia o impulsiona a - enquanto deus-artista - encantar, seduzir e expressar o seu drama. O efeito da recepção cria críticos e gera valores estéticos: observação, contemplação e discordância. O ator do começo não é mais o mesmo pois, fragmentado, a sua excitação dionisíaca o mantém consciente e apto tanto para a comunicação quanto para a representação do seu personagem. “O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento o entusiasta dionisíaco se vê a si mesmo como sátiro e como sátiro por sua vez contempla o deus, isto é, em sua metamorfose ele vê fora de si uma nova visão, que é a ultimação apolínea de sua condição. ” (NIETZSCHE, 1992, p. 60).
Representado deuses, os homens fazem as divindades descerem ao mundo material, corporificando-as e tornando-as visíveis e acessíveis a seus anseios e medos e necessidades e perplexidades. [...] buscam observarem -se a si mesmo “de fora”, talvez utilizando o riso o deboche como embrião de uma forma de a sociedade autocriticar-se através da representação de seus costumes cotidianos: na ânsia de sair de si para ser outro [...] não sendo totalmente absurdo partir daí para especulações sobre fascínio ou recusa, insatisfação ou procura etc. (PEIXOTO, 2005, p. 13).
Possuído e se expressando para o outro, seu sentimento de vazio é diminuído, a satisfatória presença do deus místico Dionísio é capaz de satisfazer o seu introspecto o levando em uma purgação através da realização e da sua fala à uma consciência transitória entre o sentido e o falado. Para Schleiermacher, autor da virada do século XVII para o século XIX, estabelece uma hermenêutica geral que se preocupa partir de certos princípios com qualquer forma de interpretação e qualquer forma de sentido. Ele estabelece a unidade entre pensamento e linguagem: não há pensando sem discurso, não é possível pensar sem palavras, portando, a virar uma análise da compreensão, a partida da natureza da linguagem. Em suas distinções estar a compreensão gramatical (totalidade da linguagem, tanto do texto como do discurso) e a compreensão técnica ou psicológica (totalidade dos objetivos do autor). Segundo ele, todos os pontos devem estar em conjunto para uma melhor compreensão “da natureza da linguagem e das condições fundamentais da relação entre o falante e o ouvinte” (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 64).
A experiência se dá sempre que se experimenta o mundo, sempre que se supera o estranhamento, quando se produz iluminação, intuição, apropriação. Nesse viés, as palavras não designam algo unívoco, mas brotam do movimento comunicativo da interpretação que o homem faz do mundo, e que se dá na linguagem. (JUNGLOS, 2019, p.143).
O homem tem um corpo, ou seja, pode “deslocar-se” dele e tomá-lo como objeto de suas reflexões. [...] somos também a consciência deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem filosófica, se fala da transcendência humana: o homem transcende, vai além da imediatividade do aqui e agora em que está o seu corpo. (DUARTE JÚNIO, 1994, p.20).
O mesmo ator que começa com um problema de interpretação e vê na sua vida contradição e sofrimento é capaz de relacionar sua arte com o poder de estar sendo visto. Com a receptividade aos sinais, aos gestos e às mímicas e com a superabundância dos seus meios de expressão e de comunicação. A sua embriaguez será uma condição filosófica, possuirá também uma força redobrada de mais valor para uma invenção do seu lirismo e ser poético. Assim, só se ouvirá, só se pensará e só se escutará Homero.
Conclusão
No final do seu dia, esse ator se olhará no espelho e verá que é fruto da sua própria invenção. Além de ser um fingidor, vai estar explícito nele a ausência de todo o sentimento que acumulou, criou, expressou e inventou. Verá também que nunca existiu outro como ele e que ao mesmo tempo, todos sentem o mesmo que ele.
Embriagado ou em sonho, acompanhará diariamente o seu constantemente vazio, se sentindo como o único criador do seu mundo simbólico. Perceberá que nada à sua volta faz ou fez sentido; que sua alma não tem coesão, coerência e/ou harmonia. A presença de um outro será para ele insignificante e a dificuldade de perceber que existe o levará a uma depressão profunda e ao desvalor de sua vida.
Mesmo se achando e se sentindo capaz do perfeito, o dualismo Shakespeariano entre ser ou não ser e o paradoxo do mudar ou de permanecer o levará a fazer escolhas e lodo depois ao arrependimento delas. Sempre necessitando de encenar a sua extroversão poética a um público ou platéia. Mesmo que seja no seu teatro de um homem só.
Sendo no palco ou fora dele, todo o seu fingimento irá transcender para a sua interpretação. Seu impulso poético permitirá que se esqueça do que é para se transmutar no mais fundo do ser do seu personagem. Esse é o ator que não existe e que ao mesmo tempo (re)existe dentro da sua arte.
Referências bibliográficas
BARROS, Manoel de. O menino do mato. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral: textos de Platão a Brecht. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
CRAVO, Mário. Impulso poético. Salvador: Contexto & arte Salvador Ba. 2003.
DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método II. 5ª Ed. Tradução de Manuel Olasagasti. Salamanca: Sígueme, 2002.
JUNGLOS, Márcio. Hermenêutica inclusiva. Rio Grande do Sul: Nova Harmonia LDTA, 2019.
KIERKEGAARD, S. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra Como Escritor. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tr. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
PESSOA, Fernando. Novas poesias inéditas. Lisboa: Ática, 4ª ed. 1973.
________________. Poesias, 1ª publ. in Presença, nº 36. Coimbra: nov. 1932.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tr. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Introdução
Nas artes cênicas, a atriz ou o ator é aquele que interpreta ou encena uma ação dramática baseando em estímulos sonoros ou visuais, textos trágicos ou cômicos e é capaz de dar vida, corpo e voz a uma emoção, pensamento, personagens, poesias ou textos.
O ator que relatarei, vai estar vivo nele um problema que está além da sua representação enquanto artista e o do distanciamento de sua expressão e do seu sentimento. Os seus pensamentos e idealizações podem estar conectados ao seu real movimento corpóreo e a sua entoação poética. A sua linguagem se aperfeiçoa quando a possessão lhe oferece a consciência da divindade de espírito artístico. Não é necessário ser um ator para se identificar com os seus sentimentos.
Para se superar a sua dor, é inevitável que se construa enquanto divindade. E vai ser enquanto deus-artista que esse ator conseguirá fugir da sua realidade, solucionar a sua incompletude, buscar um autoesquecimento ou simplesmente desfrutar do seu “problema” de transfiguração entre o que sente e o que expressa.
Palavras-chaves: possessão dionisíaca; embriaguez; teatro; linguagem.
Desenvolvimento
O começo do problema desse ator - que não atua somente em palcos, mas também na vida cotidiana - é a incapacidade de se enxergar enquanto um personagem já definido e construído. A forma vazia como se enxerga e de como se desvaloriza define um estado criador que, ao mesmo tempo que o leva a ser adorado, traz consigo desprestígios que não o impulsionarão com que se sinta realizado e de só conseguir atingir esse estado eufórico e entusiasmado através de uma embriaguez, possesso ou desperto do seu sono. É um ator que se incomoda constantemente e sempre está se colocando em movimento. Seja em uma ansiedade extrapolada ou na necessidade de agitação para conquistar - na sua calmaria - o prazer desejado.
Uma forma de permanecer fixo e também constante; percebendo-se enquanto construtor de realidade e produzir no seu fingimento a ação que levará o bom desenvolvimento da sua arte, do seu impulso poético ou dos seus movimentos - enquanto
dança. A visceralidade estará manifestada no seu corpo e mimese. A sua paixão o levará a viver, precisar e depender totalmente desta condição para que se sinta completo novamente.
Havendo, mesmo assim, um grande vazio entre o seu palco e o seu cotidiano. Mesmo tendo noção do seu potencial, é vivo nele o sentimento de semipleno. Vendo a necessidade de fazer no outro o seu existir. Seu excesso de sentimento e de emoção sempre o moldará em uma deficiência de autoidentificação e por escolha, se manterá preso na ânsia pela mudança e também pelo desejo de uma permanência eterna. Em Jean Lacoste (1986) esse artista está dividido em um dualismo entre o dionisíaco e o ressentimento.
A necessidade de destruição e de inovação pode ser a expressão de uma força superabundante, ao mesmo tempo sacrílega e prenhe de futuro: é o artista dionisíaco. Mas essa necessidade pode nascer também da fraqueza, do ódio a toda superioridade e do desprezo por si mesmo. É o artista do ressentimento. Do mesmo modo, a necessidade de permanência e de eternidade pode nascer do amor ao mundo e da gratidão: é a arte da apoteose, ditirâmbica. (LACOSTE, 1986, p.90).
Se por um lado existe a necessidade do apego ao sentimento e ao distanciamento - com o que pode ser deixado no esquecido. A condição consciente entre o seu começo, meio e fim o levará a uma busca por constante metamorfose pois ele não reconhece o seu estado atual de abandono e desprezo. E por tanto acumular, muito acabará esquecendo, atrofiando e - ao mesmo tempo que se distancia, se mantém mais perto da sua subjetividade. Ou seja, todo o sentido é construído para ser esquecido em outro momento.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.
(PESSOA, Não sei quantas almas tenho, 1973, p. 48).
Trazendo a linguagem em Gadamer (1993) sobre a sua limitação que ao ganhar um significado e contextualização torna-se significativa, mas sem a sua corporeidade de sentido próprio. Ressignificando este conceito; vendo aqui o autoesquecimento também como a sua importância enquanto linguagem - trago novamente o exemplo de Gadamer quando sua filha o pede para ensinar a escrita da palavra morango. “Disse-lhe como era; ela ficou um instante pensativa e respondeu: ‘Que estranho, quando ouço assim, não entendo mais a palavra. Só quando volto a esquecê-la é que estou novamente nela” (2002, p. 194). Recoloco no papel desse ator - de profundo introspectividade que estando a todo momento consigo mesmo, traz o primeiro sentido das coisas, sustentando um sentimento de profundo apego e compreensão do seu belo mundo.
Em um dos seus últimos livros, o escritor Manoel de Barros traz em poesias as suas memórias e sentimentos de infância. Tocado de um intenso saudosismo e lirismo, sendo essa a sua primeira forma de ver o mundo e também a de sentir. “A gente não gostava de explicar as imagens porque // explicar afasta as falas da imaginação. // A gente gostava dos sentidos desarticulados como a // conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de mosca. // Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais. // [...] A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais. // [...] A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala.” (BARROS, 2015, p. 12).
A construção de uma memória fixa e permanente se perde ao mesmo tempo em que - para se manter apegado - no seu mais íntimo sentimento será necessário passar pela fase do abandono.
Esse mesmo ator rico em emoções que se impulsiona a todo momento em uma busca por novas paixões, mantém uma dificuldade em expressar aos outros o que para si mesmo é óbvio e permanente. Ao mesmo tempo em que tem consciência do seu estado e pensamentos, a articulação com um outro - ou uma plateia - o retrai para um melhor aperfeiçoamento da sua mimese e atuação. Já que ele não faz o personagem, mas sim se incorpora em um.
O mesmo lado da mesma moeda
Esse ator se prende a sua primeira constituição de sentido e se mantém apegado na única coisa que o liga a si mesmo. Não existindo nenhuma dialética e nenhum interesse em expressar o julgar do outro porque nesse estado, todos os sentimentos estão corretos e se tem um - talvez falso ou ingênuo - domínio sobre a sua verdadeira vivência; mesmo com ou sem a sua consciência.
A possessão é a condição prévia de toda a arte dramática; possuído, o exaltado por Dionisos vê-se como sátiro - e como sátiro, então, ele vê o deus. O que significa que, metamorfoseado, ele apercebe, exterior a si, uma nova visão que é a concretização apolínea do seu estado. (BORIE. ROUGEMONT, SCHERER. 2014, p. 348).
Nessa consciência reflexiva ele se depara com uma metamorfose novamente dualista, incompleta e constantemente em movimento. A ilusão apolínea o cega completamente os olhos. Não é sentido o que vem de longe e nem o que vem de perto. No mesmo instante que as emoções ficam à flor da pele, uma frieza e indiferença desafloram por todos os lados. Fica então carregado por um forte incômodo que gera a sua possessão.
Já a recepção externa, mesmo causando pouco efeito sobre a sua transfiguração, cai sobre ele em formato de desânimo e apatia. Ao mesmo tempo o nutrindo com uma casca rígida e concreta de ilusão. Pode voltar a antiga tentativa de querer sair desse estado e de, ao mesmo tempo, querer estar nesta constante pulsação, pois tudo isso é guardado para a sua solidão e expressando em forma bela para uma plateia. Expondo assim a sua representação - quase perfeita - de uma imaginação idealizada, de uma emoção individual e de uma subjetividade límpida.
DITO POR NÃO DITO FICA
retorno sem retornar, parto
chego sem saber e falo
no mesmo instante mudo!...
Loucura - parto e fico!...
vou e não vou
sou e não sou
O real é puro sonho
puro - enrolado
forte manipulado
o fraco dominador
de nossa herança
contra-senso e paradoxo.
(CRAVO, 2003, p. 73).
Visto que a arte se coloca aqui como um remédio diante de uma prostração; de uma impotência em olhar a vida e sua personalidade de frente, de encarar a realidade fixa e a mutável como elas realmente são. Tem então a necessidade de construir-se enquanto deus. De criar fragmentos do que não possa vir a ser por inteiro. Esse ator não se transfigura se não através da sua linguagem corporal, deixando suas emoções no intangível, ao mesmo tempo que a transmite para todo o seu corpo, sua expressão ou leitura de um texto. Sendo também através das palavras que obterá uma consciência capaz de proferir o seu eu lírico, de criação e de pensamento.
Nesse ator, em um estádio religioso (Kierkegaard, 1986), que movido pelo arrependimento, buscará um sentido fora da vida prática, fora dos prazeres corpóreo, fora da vivência de moral e de uma lei; irá em busca da transcendência. Será esse o momento em que a subjetividade do indivíduo se encontrará com o absoluto, o transcendente. Portanto esse encontro exige um passo definitivo, profundo e também cego. No qual Kierkegaard chama de fé e também considera como um modelo a ser seguido. Sendo assim, esse estágio não pode ser alcançado em nenhuma justificação racional ou científica, esse é o momento em que esse artista acredita e confia naquilo que não o dará certeza. O estádio religioso supera o estádio estético (no qual o homem se abandona à imediaticidade, deixando nas decisões alheias o seu desejo) quando o indivíduo se coloca diante de uma escolha que implicará uma finalidade maior. O seu movimento será ímpeto e consciente.
Optando por uma não significação do seu mundo simbólico, será envolto por uma casca - em forma de máscara divina - capaz de materializar tudo o que foi construído e que agora será perdido no despertar do sonho apolíneo para a sua embriaguez dionisíaca.
Nesse entusiasmo, a noção da existência de um outro e de uma plateia o impulsiona a - enquanto deus-artista - encantar, seduzir e expressar o seu drama. O efeito da recepção cria críticos e gera valores estéticos: observação, contemplação e discordância. O ator do começo não é mais o mesmo pois, fragmentado, a sua excitação dionisíaca o mantém consciente e apto tanto para a comunicação quanto para a representação do seu personagem. “O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento o entusiasta dionisíaco se vê a si mesmo como sátiro e como sátiro por sua vez contempla o deus, isto é, em sua metamorfose ele vê fora de si uma nova visão, que é a ultimação apolínea de sua condição. ” (NIETZSCHE, 1992, p. 60).
Representado deuses, os homens fazem as divindades descerem ao mundo material, corporificando-as e tornando-as visíveis e acessíveis a seus anseios e medos e necessidades e perplexidades. [...] buscam observarem -se a si mesmo “de fora”, talvez utilizando o riso o deboche como embrião de uma forma de a sociedade autocriticar-se através da representação de seus costumes cotidianos: na ânsia de sair de si para ser outro [...] não sendo totalmente absurdo partir daí para especulações sobre fascínio ou recusa, insatisfação ou procura etc. (PEIXOTO, 2005, p. 13).
Possuído e se expressando para o outro, seu sentimento de vazio é diminuído, a satisfatória presença do deus místico Dionísio é capaz de satisfazer o seu introspecto o levando em uma purgação através da realização e da sua fala à uma consciência transitória entre o sentido e o falado. Para Schleiermacher, autor da virada do século XVII para o século XIX, estabelece uma hermenêutica geral que se preocupa partir de certos princípios com qualquer forma de interpretação e qualquer forma de sentido. Ele estabelece a unidade entre pensamento e linguagem: não há pensando sem discurso, não é possível pensar sem palavras, portando, a virar uma análise da compreensão, a partida da natureza da linguagem. Em suas distinções estar a compreensão gramatical (totalidade da linguagem, tanto do texto como do discurso) e a compreensão técnica ou psicológica (totalidade dos objetivos do autor). Segundo ele, todos os pontos devem estar em conjunto para uma melhor compreensão “da natureza da linguagem e das condições fundamentais da relação entre o falante e o ouvinte” (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 64).
A experiência se dá sempre que se experimenta o mundo, sempre que se supera o estranhamento, quando se produz iluminação, intuição, apropriação. Nesse viés, as palavras não designam algo unívoco, mas brotam do movimento comunicativo da interpretação que o homem faz do mundo, e que se dá na linguagem. (JUNGLOS, 2019, p.143).
O homem tem um corpo, ou seja, pode “deslocar-se” dele e tomá-lo como objeto de suas reflexões. [...] somos também a consciência deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem filosófica, se fala da transcendência humana: o homem transcende, vai além da imediatividade do aqui e agora em que está o seu corpo. (DUARTE JÚNIO, 1994, p.20).
O mesmo ator que começa com um problema de interpretação e vê na sua vida contradição e sofrimento é capaz de relacionar sua arte com o poder de estar sendo visto. Com a receptividade aos sinais, aos gestos e às mímicas e com a superabundância dos seus meios de expressão e de comunicação. A sua embriaguez será uma condição filosófica, possuirá também uma força redobrada de mais valor para uma invenção do seu lirismo e ser poético. Assim, só se ouvirá, só se pensará e só se escutará Homero.
Conclusão
No final do seu dia, esse ator se olhará no espelho e verá que é fruto da sua própria invenção. Além de ser um fingidor, vai estar explícito nele a ausência de todo o sentimento que acumulou, criou, expressou e inventou. Verá também que nunca existiu outro como ele e que ao mesmo tempo, todos sentem o mesmo que ele.
Embriagado ou em sonho, acompanhará diariamente o seu constantemente vazio, se sentindo como o único criador do seu mundo simbólico. Perceberá que nada à sua volta faz ou fez sentido; que sua alma não tem coesão, coerência e/ou harmonia. A presença de um outro será para ele insignificante e a dificuldade de perceber que existe o levará a uma depressão profunda e ao desvalor de sua vida.
Mesmo se achando e se sentindo capaz do perfeito, o dualismo Shakespeariano entre ser ou não ser e o paradoxo do mudar ou de permanecer o levará a fazer escolhas e lodo depois ao arrependimento delas. Sempre necessitando de encenar a sua extroversão poética a um público ou platéia. Mesmo que seja no seu teatro de um homem só.
Sendo no palco ou fora dele, todo o seu fingimento irá transcender para a sua interpretação. Seu impulso poético permitirá que se esqueça do que é para se transmutar no mais fundo do ser do seu personagem. Esse é o ator que não existe e que ao mesmo tempo (re)existe dentro da sua arte.
Referências bibliográficas
BARROS, Manoel de. O menino do mato. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral: textos de Platão a Brecht. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
CRAVO, Mário. Impulso poético. Salvador: Contexto & arte Salvador Ba. 2003.
DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método II. 5ª Ed. Tradução de Manuel Olasagasti. Salamanca: Sígueme, 2002.
JUNGLOS, Márcio. Hermenêutica inclusiva. Rio Grande do Sul: Nova Harmonia LDTA, 2019.
KIERKEGAARD, S. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra Como Escritor. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tr. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
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