O buraco no meio do quarto (Rascunho)



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O BURACO NO MEIO DO QUARTO


CENA I

(Quarto simples com uma luz escura focada no centro; uma escrivaninha de madeira com uma muda de Espada de São Jorge e papéis em branco junto com canetas; outra cadeira no canto esquerdo e no direito; um colchonete no chão esquerdo; um grande buraco no centro do quarto oscilando com a luz escura. A cena começa com o personagem andando pelo quarto, sentando e levantando da cadeira).

- (sentado ao som de vibrações de planetas fala de frente para o público) Eu não sei, não faço ideia do horário ou tempo atual. Devo viver para além dos relógios… Porém sempre aqui e sempre sentindo alguns olhares por cima de mim. (Andando pelo quarto fitando as paredes e o público) Não imagino de onde  este sentimento possa estar vindo. (Rindo)

- Quem sabe vem das estrelas e do brilho de um belo pôr do sol. E olhando também para cima, vejo que existem tantas coisas nesta vida que também nos observam.

- São tantas criaturas que ainda não conhecemos, mas que estão por aí e lá fora. (fala da janela encantado com o que vê) Podem estar em algum lugar — talvez nos monitorando e acompanhando a nossa lenta evolução.

- E eu me encontro aqui. Fechado entre quatro paredes e desejando transcender às dimensões que cercam.

- E pensando bem, ainda tenho um comprido caminho pela frente… Da porta do meu quarto até aqui já não tem mais esperanças e todas as saídas dão para paredes fechadas ou para outros buracos sem caminhos nem fins.

- Sim, talvez sejam todos os quartos pequenos, moídos e esfiapados "quem sabe igualzinhos" ao meu. (Entusiasmado anda apressadamente pelo quarto).

- (para o buraco) Olha, eu acho que deve ter alguns olhos sobre a gente! Posso acabar nunca vendo nada além do que já vejo de perto, mas  é como já falei. Essas regras valem para alguns quartos. E é aconselhável que para alguém ou algo estar aqui dentro que deixe  todos — ou boa parte — dos seus pedaços, egos, esperanças e todo o seu excesso de euforia ali mesmo (apontando para a entrada). Do lado de fora. Porque aqui, tudo vai estar incompleto. E sendo assim, a incompletude de tudo se desenrolará e irá voltar para aquele velho e conhecido sentimento. 

- É o vácuo do meu vazio que me faz boiar em águas escuras. E é o escuro do meu quarto que me alaga a paz ao tempo em que também enxuga.

- Veja que cada buraco do seu corpo irá ganhar mais um vazio e quem sabe se perder - ou talvez se achar - dentro do seu estúpido quarto.

-  Peço para olhos que me fitam que ao terem entrado tenham esquecido seus rostos. Peço que não lembrem o que vocês são e também que esqueçam de onde vieram e para onde vão.

- O sentido aqui se ganha e também se perde. (Aparte) Brincamos com os dois.

- Como disse, aqui seus buracos vão ganhar outros formatos e logo depois… (Confuso) Depois eu não sei ao certo o que acontece... Existem tantas chances de terminar bem quanto de não terminar em  nada. 

- E são algumas às vezes que os sentimentos extremos se encontram. O equilíbrio se faz necessário, é claro, porém o peso das medidas nem sempre são justas e nem sempre se equilibram.

- Mas quem disse que a justiça não paira pelo universo? A minha mente criadora me projeta em tantas lacunas diferentes…

(Olha a todos sem direção nenhuma enquanto anda pelo quarto. Parando na frente do buraco.)

- (apreensivo) Esses olhos que nos olham... Vou apresentar uma pouco "quase nada" sobre você. (Fala calmo e docemente olhando o vazio).

- Até porque (Sussurrando para ele) de tudo fugimos e já esquecemos. (Para o público) Esse buraco não é meu amigo, mas está aqui, na minha frente mais quente que o sol e mesmo assim me queima e congela feito gelo.

- Esse quarto, além de uma provável mente, é um portal para outras e várias emoções. E vocês conseguem sentir a sua vibração?

- Porque nada aqui está parado. Tudo se move para caminhos casualmente desconhecidos e com anseios desejáveis. Pois tudo vibra em um som ao tempo em que se sincroniza em um diferente pulsar que gera também incríveis tons de únicas cores vivas.

- E eu fico a me perguntar: por que eu vou ser só eu mesmo enquanto posso ser milhares? Sentir todas as coisas, todos os impulsos e todas as sensações. (Vira-se para o buraco) Bom, se você não me consumir por inteiro, não é?

- Devo lhe apresentar e o comparar a um… A um meteoro, para que te lembres o tamanho do seu efeito e de quão devastador — ao tempo em que se é entendido que é completamente natural. Talvez seja feito para ser assim.

- (Andando ansioso por todo o quarto. Calmamente chega à escrivaninha; assobia apaixonado e escreve).

- Ai, ai, ai. Quem dera fosse tão fácil começar como todo mundo faz na vida. Não vou me comparar com ninguém novamente… Não, mas confesso que fica impossível para mim manter um foco ou uma concentração sentindo esse vazio tão de perto. Fico mudo ao gritar e me congelo quando deveria estar pegando fogo. (Levanta da cadeira endurecido e se mantém parado. Em um explícito silêncio e em uma curta pausa grita sem dizer nada) O que você quer que eu faça? (Amassa e joga o papel no chão e levanta agitado, anda apressado pelo quarto, volta a se sentar na cadeira do lado direito virado contra o público).

- Até porque, eu, eu...

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.//

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.//

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.//

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.¹

(Quarto escurece ao som de trovão).


CENA II

(Ainda ao som de trovoadas o quarto é iluminado ao se levantar e acender velas).

- Não consigo, não consigo, não consigo... Estou preso aqui dentro e vou está preso caso resolva sair também. E é assim que devo começar, não é? Trancafiado e sufocado, preso e estagnado. Sentindo com tamanha força o peso de uma liberdade não conquistada.

- Mas não, não sei mais de nada. Comigo nada disso vai colar. (Falando consigo mesmo) Irei voltar ao que estava fazendo e acabar de escrever o que ainda estava escrevendo. É certo que esse quarto só tem lugar para um, mas você também sabe que não são somente dois de nós que habitam aqui. (Com medo enquanto anda pelo quarto).

- Vejo que até sobram espaços, até que me sinto confortável. Mesmo assim, não recebo nenhum estímulo para querer continuar sem nenhuma noção do que pode acontecer e em que teia eu posso cair e perecer.

- (Para o buraco) Você simplesmente vai ficar aí... Mas hoje, hoje vejo que está maior do que antes. Deve ser normal. Eu até que devo lidar bem com você, não é mesmo?

- Isso quando não chego muito perto e me toca as entranhas e vem com isso aquela vontade de esquecer e de largar tudo.

- Talvez só ele me entenda ou talvez só nele eu me entenda. Quem vai saber?

- Confesso que algumas vezes queria que isso não estivesse ali. Poderia está ocupado com tantas outras coisas; poderia colocar no lugar uma grande mesa ou só mais um tapete… Poderia ser até uma pessoa. Mas não, esse buraco vazio me entope as vísceras de frieza.

- Mesmo reclamando, me queixando… Ainda vou o preferir desse jeito. Não sei o que é, talvez com um vazio eu me sinta completo.

- Além disso, sinto que pode ser um chamado… Eu sei, talvez eu esteja delirando. Talvez esse buraco esteja ali pra me deixar louco. Para pregar uma peça ou só me lembrar de uma finitude que se aproxima a cada dia.

- Ai, não. Devo estar realmente enlouquecendo.

- (Aparte) Ou talvez, talvez... Deve estar aí para me fazer lembrar de qualquer coisa mesmo. Alguém que eu já devo ter esquecido, um sentimento que pode beirar a cólera ou ao perigo ou só a certeza de que nada pode ser permanentemente mantido. Sempre irei carregar comigo essa sensação de vazio. Mas ora só "orvalhos assim devem cair com o vento" é tudo o que vem da minha mente e ouvidos.

- Talvez agora não exista nada com que deva me preocupar. Mas pensando no futuro… Eu não sei o que achar.

- (Volta a sentar na cadeira) Talvez meu buraco queira falar.... (Sentado declama). 

Dito por não dito fica

retorno sem retornar, parto

chego sem saber e falo

no mesmo instante mudo!...

Loucura — parto e fico!...

                vou e não vou

               sou e não sou

 

O real é puro sonho

puro — enrolado

forte manipulado

o fraco dominador

de nossa herança

contra-senso e paradoxo.²

- (Se assusta e levanta) Chega disso! Vou voltar para a velha estagnação do outro lado do quarto e me fechar ao ponto de estragar qualquer sentimento de vazio ou buraco.

(Escurece e agora deitado no colchão ainda ao som de chuva e cochichos)

- (Apreensivo enquanto deitado, se levanta e permanece sentado sobre a cama) Levantei porque ouço vozes e pingos de chuva. Sei que fora do meu quarto molha, mas mesmo assim não deixo de ouvir ruídos e pensar nas histórias de um passado não esquecido. Ouço tudo o que me dizem. Ele fala comigo - é claro, mas posso dizer que talvez este barulho seja meu amigo. Só pode ser ou… Ou então, nada disso faz mais sentido.

- Não, não, não. Isso deveria estar dando certo.

- (Aparte) E por que não está? Sinto que esse quarto aos poucos irá me sufocar. E me pergunto o porquê, ao troco de quê e pensando no quê… Como tudo isso pode ocorrer? 

- (Fala para si mesmo enquanto levanta da cama e vai para outro lado do quarto) Mas é inútil me perguntar os porquês.

- (Aparte) Não apareça fazendo mais perguntas. Já tenho a resposta pensada para todas, mas nenhuma pronta para mim mesmo. (Volta a se deitar no colchonete)

 

CENA III

- (O tempo passa pela janela, já é sentido que é noite. Ainda deitado) Eu quero sentir frio, me congelar feita gelo, mas por dentro eu só queimo... Talvez eu faça um macarrão com alho e óleo. Vou me sentir mais satisfeito. Também posso colocar cebolas e coentro.

- Mas não há nada que eu coma capaz de tapar esse vazio que me consome por dentro e faz com que, mesmo saciado, queira devorar tudo e todos a minha frente.

- (Levantando) Mas mesmo com a barriga farta ainda vou continuar com medo. E sabe do quê?

- Medo desse buraco não ser somente um. Talvez existam vários - de outras formas, profundidades e até cheiros diferentes.

- E se eu estiver certo, ele é mais profundo do que penso. Mesmo assim, não quero expor para todo mundo o tamanho que ganhou o meu fim.

- O que vocês viram talvez não chegue nem a um terço da profundidade desse buraco.

- Posso tentar esconder, mas, mas...

- (Aparte) Mas é impossível. Estará na minha cara, vou deixar explícito o tamanho do buraco que carrego. Convivo com ele todos os dias e é deprimente tentar esconder o que sinto, o que finjo ou onde o sufoco.

- Mesmo gritando, ainda vou continuar paralisado e completamente mudo. Você sabe que não tenho nenhuma roupa seca. A noite começou chovendo e deixei sobre o céu todas os agasalhos, todos os sentimentos e tudo o que guardei e se formou com esperança e logo sem ânsia desbotou com amargura e tristeza.

- Também não plantei nenhum remédio, nenhuma cura. Fiz de pensamentos suicidas pontes capazes de me ligar a um estado em que em que estou completamente completo. Mas esqueço o meu vazio no sereno de um céu aberto.

- Coloquei tudo o que tinha para molhar na chuva. E ela saiu encharcando tudo, perdendo todo o sentido que um dia possuía.

- Agora me vejo preso e ao mesmo tempo sinto uma tamanha agonia que não me julgo são se nesse quarto eu escolher permanecer. (Vira-se para o buraco, se agacha no chão e em tom de despedida fala consigo mesmo).

- Mas eu não escolho nada. Não digo nada. Não penso mais em nada.

- E mesmo que lute contra, desse quarto não vou conseguir sair. Irei tentar, mas sem nenhuma perspectiva continuarei aqui.

- E se for para ser assim, me pergunto. (Aparte) Cada um preso dentro do seu próprio quarto, sentindo o seu próprio cheiro, rasgando a sua própria casca e sem nenhum domínio do seu próprio corpo, sem controle do seu próprio vômito e sentindo todos os sentimentos que existem…

- E se for para ser assim! Sem querer, sem vontade, sem ânimo e ainda preso aqui.

- Não, não quero dizer mais nada. A cada palavra que digo, esse buraco aumenta de tamanho. E ainda quero ter espaço para pisar.

- E é isso, ainda quero ter chão.

- Se esse buraco não aumentar de tamanho ao ponto de me engolir por inteiro ainda terei condições para respirar, de continuar vivo. Condições de…

- (Volta-se ao buraco e canta)

Sonho impossível

 Sonhar

Mais um sonho impossível

Lutar

Quando é fácil ceder

Vencer

O inimigo invencível

Negar

Quando a regra é vender

Sofrer

A tortura implacável

Romper

A incabível prisão

Voar

Num limite improvável

Tocar

O inacessível chão

É minha lei, é minha questão

Virar esse mundo

Cravar esse chão

Não me importa saber

Se é terrível demais

Quantas guerras terei que vencer

Por um pouco de paz

E amanhã, se esse chão que eu beijei

For meu leito e perdão

Vou saber que valeu delirar

E morrer de paixão

E assim, seja lá como for

Vai ter fim a infinita aflição

E o mundo vai ver uma flor

Brotar do impossível chão.³

- (Se empolga e expressa uma imensa felicidade ao tempo que seguro o riso) Sonho fruto de todo perigo que neste quarto invisível revigora em mim o desejo de permanecer em solo vivo. E é isso tudo o que eu quero: te preencher com um brilho. Um brilho capaz de tapar o vazio ao mesmo tempo que saboreio este sentimento lúdico e com um imenso ar frio.

FIM

Referências

¹Poesia de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 252.

²Poesia de Mário Cravo. Impulso poético. Salvador: Contexto & arte Salvador Ba. Pág. 73,  2003.

³Música "Sonho impossível” versão de Chico Buarque e Ruy Guerra para música ‘The impossible dream” de Joe Darion e Mitch Leigh, 1994.

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