XIX

Suicide by Gabriel Grun, Oil on canvas Size,
200 x 130 cm (78.7 x 51.2 in).

XIX
   Então eu tenho que escrever tudo o que eu penso? Hum, como posso começar e ao mesmo tempo lembrar de tudo. Não, não vou abaixar essa flecha. Vou acabar me esquecendo e fingindo que nunca vi ou pensei em tal coisa. E não cogito em ter que lembrar disso novamente. Ah sim, seria muito diferente se possuísse um começo, meio e fim, mas o que possuo é incompleto e não vejo muito sentido em compartilhá-lo.
   
   A verdade é que estou escrevendo e vivendo como alguém que estivesse prestes a morrer a qualquer momento. Alguém que sente que perdeu totalmente a vontade e a energia para gastar nos mesmo sentimentos que vão ser esquecidos e repetidamente vividos. Entrando em alguma espécie de vai e volta, mas parecendo sempre os mesmos e são poucas vezes que causam mudança fazendo com que surja algo novo.

   Mesmo que eu saiba que talvez eu não seja atropelado  caso atravesse a primeira esquina, ainda vou continuar vivendo como se não fosse passar do ano. Sempre me colando à beira de algo ou de perder totalmente algum controle sobre a minha própria vida ou desejos. Vivo querendo pressa, com uma ansiedade que parece correr do que mais busca e isso me desmotiva tanto. Sinto também que não posso culpá-la, é necessário estar em movimento para que a metamorfose aconteça, mas ao mesmo tempo - sinto que ficar estável e fixo pode me levar a um melhor aperfeiçoamento do que tenho, do que sou ou do que busco alcançar.

   Posso viver em um paraíso, mas sempre terei uma flecha apontada para cima. E nada é capaz de fazer com que a coloque para baixo, a não ser que eu a esqueça. Sei que tenho poucos - ou quase nenhum - motivos para fazer isso. Um lado ainda busca manter ''vivo'', mas o outro também parece ser forte e por esse lado deverasmente sou encantado. Estou aqui e ao mesmo tempo não estou e sinto que acabo ficando trancado do lado de fora da minha própria "casa". Trancado em um real sentimento idealizado, sofrido e em outra hora escarrado.

   Tenho que confessar que não quero passar dessa semana e que mesmo me sentindo paralisado, continuo acreditando que quando chegar ao final da semana e eu ainda continuar vivo estarei respirando, mas me sentindo profundamente morto. Teria que planejar para outro dia, um próximo ano ou quando a vontade realmente for muito forte. E sei que não adianta me questionar como poderia continuar a postergar isso por mais tempo. Até quando vou carregar a sensação da necessidade da morte, sentida no momento em que deveria reinar a sensação do gostar de permanecer vivo.

   Talvez, ainda continue sentindo que não vou passar de hoje. Não conseguindo compreender a busca por um último respirar. Será realmente isso o que tanto desejo? Mas a verdade é que ainda não sei do que corro, não sei o que busco e não sei o que tanto quero. Só o pouco que sei não é suficiente. A realidade é que já me sinto morto enquanto respiro e mesmo assim, continuo a tornar isso romântico. E talvez seja, mas não é concreto.

   Ai, como queria ter mais certezas do que sinto. Seria tão gratificante se fosse certo e estivesse vivo o que também finjo sentir. Devaneios é que o que ganho e perco sentindo com tamanha pressa, sem meio-tempo, sem pausa para o lanche e com uma velocidade que oscila entre uma lentidão apática para uma rapidez exagerada. Fazendo com que acabe destruindo cada ídolo que levanto. Voltando então a mesma  realidade que não existe e que - ao mesmo tempo - faz com que eu me veja como um fruto de um irreal sonho esmigalhado, esfiapado e longe de qualquer sentido.

   E é nessa irrealidade que eu me afloro conscientemente, que vegeto incomodado e que romantizo com a necessidade de sobrevivência. Mesmo assim, não deixo de criar repulsa, de cuspir no prato e na vida em que comi e vivi, mantendo a mesma flecha ainda apontada para cima.


OUTRA PARTE DO MESMO DIA

Estive no paraíso
e ao mesmo tempo
em um precipício.

Estive doente, mas
nunca me senti
tão são.

Estive com frio e
nunca senti tanto
calor.

Estive no céu
e nunca quis 
tanto estar no
inferno.

Estive em dor
e nunca achei
tamanha paz.

Estive tão longe
de você, mas
nunca te senti
tão perto.

Hoje estou morto
e nunca me
senti tão vivo.


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