Não consigo juntar os cacos


Pedaços do lixo que já fui junto aos cacos de velhos sonhos que ainda posso ser

  Estou aqui preso no mesmo velho sentimento. Me dói querer deixar de querer e só em pensar que estou a alguns passos de perder o que mantive fincado por tanto tempo que chegou ao ponto de estragar. Não vou conseguir descrever nada do que já vivi. Irei continuar distante da única coisa que me mantém seguro, fazendo com que me coloque novamente à beira do risco, à beira do puro sentimento de abandono.

  E eu que pensava que poderia ser eu mesmo o meu pior inimigo. Imagine o tempo que levou para eu me dar conta que todo o meu fragmento não tem coesão, sentido e nenhuma harmonia. Estou continuamente me estranhando. Todos os dias procuro alguma diferença no espelho, alguma coisa tem que mudar, pois não posso parecer a mesma pessoa o tempo todo. Como tudo que é colocado de frente ao espelho irá ter um reflexo e é nesse espelho que eu não me vejo.

Sinto que eles não podem reconhecer o que eu esqueço, mas o espelho me engana, me ilude e me mantém afastado e isso pra mim é um bate e volta. Me guardei por tanto tempo que deu mofo e não sei o que fazer com o que está estragado. Vou olhar o que me tornei e tentar distanciar cada vez mais do que poderia me tornar. E é nesse vácuo que eu me perco, me esqueço e me flagelo.

  Perdido na insônia de uma noite sem fim, entre o sol e a lua, o fogo e a água, entre o quente e o gelado que não se encontram com o seu meio e muito menos com o seu fim. Vai ser nessa linha duelista que o meu coração irar se entregar, se enganar e viver encantado com o que juntou até ali.

Se já estive são, hoje não lembro mais. Se estive á beira da glória também estive á beira do abismo e de frente com isso fico pelado, descalço e desprotegido. Me estranhei com a única coisa que deveria amar. Se ainda posso fazer alguma coisa com isso, se ainda posso mudar ou abidicar, também poderia desprezar, me assustar e novamente me estranhar.

E quando eu me ver por um inteiro remendado, cicatrizado e caindo aos pedaços será que na tarde de um sol mais frio que a lua que me manterá fixo, enraizado e consciente da minha evolução, permanência e ânsia de viver uma vida entre ilusões e memórias.


NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Fernando Pessoa
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.


Insônia

Está na hora de dormir,
mesmo não estando
cansado.

Não abraço nenhum
travesseiro e logo vejo
que o menino já não
está mais do meu lado.

Vou deitar agorinha
mesmo desse lado errado
e esperar que ninguém
venha á porta querendo
do meu cacho tirar um
pedaço.

Vou colocar mais
um pingo nos is,
comer mais um 
doce fiado.
Vou dizer para o flamingo 
que sou um viado.

Vou deitar e mesmo
assim continuar
acordada,  esquecida
do tempo e querendo
estar ao seu lado.

Vou falar e seguidamente
continuar calado, levantar
e tentar te telefonar
por cima de um telhado.

Vou cantar e gritar
ainda completamente
reservado.

Vou beber com a
boca fechada, ir e voltar
sem encontrar nada
— cada vez mais atordoada.

Vou perder mais
esse sentido e
encontrar algo novo
no achado.

E nesse ir e vir,
perder e achar, que
vou procurar algum jeito
de só uma parte de
tudo mostrar.

Em uma noite que vai
o dia inteiro durar.

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